Hoje, 20 de março, é o Dia do Contador de Histórias. Nós, seres humanos, rotineiramente, dividimos com pessoas próximas causos e experiências de vida que se relacionam diretamente com aquilo que guardamos na caixola. É na experiência compartilhada que a memória se fortalece. Quando fazemos comentários do tipo: "lembra-se daquela viagem..." e recebemos de algum amigo ou ente querido um sonoro: "Claro que lembro!” atribuímos à memória ares de socialização.
Volta em meia, conto em sala de aula que minha avó faz o esforço de encontrar os amigos ainda vivos, mesmo que em um velório ou sepultamento, não só para velar o corpo daquele que se vai, como também para reviver momentos de um passado longínquo e extremamente saboroso com aqueles que ainda estão vivos. É habitual escutar dela, depois que volta desses encontros, comentários sobre as idades dos amigos, a ordem dos próximos a serem sepultados e os "fura-filas" que, mesmo mais jovens, foram "chamados" a partir antes. Pode parecer que vozinha seja apenas uma "figura", mas faz muito sentido todo o esforço dela de recontar histórias para se manter viva, mesmo em ambientes em que a morte torna-se tão presente. A memória só faz sentido, diz ela, se compartilhada. Assim, traz-se o testemunho e a comprovação, a la São Tomé, de que os fatos relatados aconteceram mesmo.
Um aspecto interessante da contação de histórias é que ela torna imperativa a oralidade. Ou seja, antes mesmo da escrita e de toda a aura em torno do registro, a fala - como uma evolução do processo não verbal de comunicação - é tida como o instrumento que nos diferencia dos demais seres. Concatenar ideias e traduzi-las em um código que, apesar de dinâmico, pode ser compartilhado é algo realmente significativo.
Hoje, contar histórias pressupõe a imaginação mediada pela escrita. É amparado no livro e no que nos diz o autor das tais palavras, que a gente faz caras e bocas, entoa frases, traveste-se de diferentes personagens e deixa a imaginação, mesmo que não completamente livre, seguir o rumo que a liberdade nos apontar. Há quem diga que a gente perde memória com o registro escrito. De fato, mesmo dirimindo-se do exagero dos apocalípticos, quantos de nós guardamos de cabeça os números dos telefones dos familiares ou citações inteiras de poesias e músicas que dão o tom de muitos momentos significativos de nossas vidas? Poucos ou iluminados, como minha esposa, que tem memória de elefante. Quem sofre sou eu (risos), obviamente, nas discussões - raras, ainda bem - que temos. Ela sempre lembra mais do que eu, com falas e pormenores, das coisas que ocorreram.
Mas de tudo o que disse até agora, nada é mais empolgante que contar histórias para uma criança. Liberta de referências preconceituosas ou mesmo de pudores que minam a imaginação, uma criança, se estimulada, vai longe. Tão longe que diariamente quer passear pelos mesmos personagens ("conta novamente a história desse livro, papai") e incorpora a cada viagem uma nova palavra, um novo detalhe, como se apurasse o olho, a fala e a imaginação para novas experiências, daquelas bem dinâmicas que só a fala nos permite ter. Elisa, por exemplo, está vidrada nos livros. Pede para carregar um diferente todo dia, conta para si mesma as histórias, lida com os medos e com as brincadeiras, escolhe quem quer ser e se veste dignamente dos valores dos personagens.
Hoje, por exemplo, foi pra escola dizendo que era a Branca de Neve e, de tão Branca de Neve que é, saiu segurando a barra direita do calção da escola como se fosse a saia do vestido de gala da tal princesa. Espero que eu tenha sido o chofer dessa carruagem encantada e encantadora.
O Dia
O Dia do Contador de Histórias é comemorado desde 1991, com o objetivo de reunir os contadores de todo o mundo.
Bom projeto de incentivo ao hábito da leitura
O Itaú tem um projeto dos mais interessantes de incentivo à leitura. Em sua página Itaú Criança a empresa disponibiliza gratuitamente uma coleção de livros infantis, que é atualizada rotineiramente. Além de permitir o acesso a bons livros, abre espaço para que escritores e ilustradores brasileiros publiquem. Excelente projeto de responsabilidade social. Ganho significativo para a imagem da organização.
Ótimo texto sobre o assunto
Eugênia teve um texto sensacional dela sobre a experiência de ler histórias para uma criança publicado no Literatura BR.
Os laços nos movem e movem o mundo Um emaranhado de laços que dizem muito sobre nós, Paulo e Eugênia: dois jornalistas, pesquisadores com mestrado em Comunicação Estratégica. Somos também autores desse blog que se modificou e continua a se modificar com o tempo, acompanhando nossa vida a dois e com o mundo que já conquistamos e os outros tantos que pretendemos enveredar por. Mas o que mais nos define mesmo é que somos a família que gerou Elisa.
sexta-feira, 20 de março de 2015
O Contador de Histórias também tem seu Dia
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4 comentários:
Nem vou dizer que minha netinha é encantadora! Que ela é o sol inteiro e não apenas um raio dele. Quero falar da contação de histórias.
Tive a feliz oportunidade de ouvir de um senhor do meu interior todas as histórias do folclore e as criadas por ele. Ficávamos debulhando o feijão na sala de sua casa. Muitas crianças! E ele, inteligentemente, nos entretia com as histórias e usufruia do nosso laboro gratuito.
Mula Sem Cabeça; Saci Pererê; O Príncipe que Virou Sapo; Lubisomem... e tantas outras. Algumas me enchiam de pavor. Mas me fascinavam!
Sei que muitas daquelas histórias contribuiram para a minha formação. São um ponto importante da minha vida. A gente pouco interagia, mas quem controla a imaginação?
Parabéns aos contadores de história! Principalmente aos pais que como o Paulo, se encantam com o encantamento dos filhos através das histórias contadas, recontadas e recriadas.
Quando vou pedalar no sábado pela manhã observo sem compromisso as coisas que me passam diante dos olhos. Quando algo acontece, marca, positiva ou negativamente. Poucas pedaladas depois paro, pego o celular e anoto, ou gravo. Me distraio e esqueço. De memória confesso que sou fraco, mas sou um bom remoedor (rs).
Se perguntarem minha preferencia quanto a contar minhas histórias ou escreve-las, sempre irei preferir contar. Contar através da fala enriquece de sentimentos e intenções que nem sempre se consegue por na escrita. A escrita limita (triste fato).
Parabéns pelo texto!
Grande abraço.
Obrigado, D. Eleni, por partilhar conosco suas histórias e memórias. Volte sempre, por favor. E concordo plenamente: Elisa é o sol inteiro (rs).
Meu caro Gabriel, você é um contador de histórias nato! Obrigado pela leitura do texto e por partilhar conosco um pouco do seu processo criativo. Pedalar, observar, gravar ou anotar e redigir (quando a escrita não parecer tão limitante) sempre rende em sua página ótimas histórias. Grande abraço!
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